Campos de Altitude e a Necessidade de Adequação Legislativa no Rio Grande do Sul
Ao longo da minha trajetória como advogado ambiental, tive a oportunidade de acompanhar de perto as angústias e desafios enfrentados pelo setor produtivo. Vejo que muitas vezes a lei não conversa com a realidade do campo e é justamente nessa distância entre a norma e a prática que surgem muitos conflitos. Por esse motivo, considero importante refletir sobre o tema dos chamados “Campos de Altitude” e sobre a necessidade de que o estado do Rio Grande do Sul avance na construção de uma definição mais clara em sua legislação.
O produtor rural gaúcho conhece a realidade da terra de perto. No campo, tradição e trabalho caminham lado a lado há gerações. Muitos herdaram áreas que foram manejadas pelos pais e avós, sempre com foco em garantir a subsistência da família e o desenvolvimento da região. Porém, nos últimos anos, um problema jurídico e ambiental vem trazendo insegurança e até prejuízos aos produtores rurais que se encontram na região do bioma Mata Atlântica no estado do Rio Grande do Sul: a falta de uma definição clara sobre o que são os chamados “Campos de Altitude”.
Esse termo aparece em leis e resoluções ambientais, mas nunca foi de fato conceituado de maneira objetiva. A Lei da Mata Atlântica – Lei Federal nº 11.428/2006 cita os campos de altitude como uma das fitofisionomias protegidas, mas não define a que altitude começam nem como devem ser caracterizados. Já a Resolução CONAMA nº 423/2010 trata do tema, descrevendo a vegetação típica, mas também sem fixar o marco da altitude. Há um vácuo normativo, curiosamente ligado ao próprio nome, que por ser característica essencial para sua identificação, torna-a vazia e sem efeitos, pois impede a caracterização inequívoca de condutas como infração ou irregularidade ambiental.
A nossa Constituição Federal estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Nesse mesmo sentido devem ser interpretadas as diretrizes aplicáveis às sanções administrativas, que exigem, além da estrita previsão legal, a descrição clara e precisa da conduta considerada ilícita.
Na prática, esse vácuo normativo abriu espaço para interpretações restritivas de órgãos ambientais, sobretudo, o IBAMA. Segundo o entendimento atual do órgão, áreas historicamente usadas para a pecuária nativa não são reconhecidas como áreas rurais consolidadas e, consequentemente, conversíveis para outros usos como agricultura, reflorestamento e pecuária extensiva em campos exóticos. O resultado desse entendimento é a aplicação de multas, embargos e insegurança para produtores que, há muito tempo, utilizam essas áreas para criar gado, plantar ou até reflorestar com espécies de valor econômico como pinus e eucalipto.
Muitos municípios do Rio Grande do Sul dependem em larga escala da atividade agrosilvopastoril. Se essa interpretação continuar prevalecendo, o Estado ficará preso a um modelo único de produção, a pecuária extensiva em campos nativos, deixando de lado outras formas de uso alternativo do solo, como a agricultura e a silvicultura, tão importantes para a diversificação da economia rural.
Outros estados já perceberam isso. Santa Catarina, por exemplo, aprovou lei própria para conceituar os Campos de Altitude, trazendo mais segurança jurídica aos produtores. A lei do Estado de Santa Catarina já foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça catarinense, tendo sua constitucionalidade reconhecida, decisão que foi posteriormente ratificada pelo Supremo Tribunal Federal em sede recursal. Atualmente, a norma é novamente questionada em âmbito nacional, por meio da ADI 7811, em trâmite no STF. Se mantida a mesma linha de entendimento já adotada, a tendência é que a lei seja preservada, mas o tema exige atenção redobrada do setor produtivo.
O recado é claro: o ajuste na legislação estadual, como vem sendo proposto em relação aos campos de altitude, não configura retrocesso ambiental nem afronta à legislação federal. Isso porque a própria legislação federal não traz um conceito normativo sobre o que sejam campos de altitude, abrindo espaço para que os estados, no exercício de sua competência incontroversa, estabeleçam normas complementares. Dessa forma, ao definir critérios objetivos, o Estado do Rio Grande do Sul não estaria reduzindo a proteção ambiental, mas sim dando clareza e segurança jurídica tanto para os órgãos de fiscalização quanto para o setor produtivo.
Por isso, é importante que o estado avance, com o setor produtivo, as entidades de classe e o próprio Legislativo estadual, trabalhando juntos para que a legislação gaúcha traga clareza, segurança e equilíbrio. O que está em jogo não é apenas a produção, mas o futuro socioeconômico de regiões inteiras que dependem do campo.
Para esclarecer os principais pontos sobre o tema e a urgência de adequarmos a legislação no estado, compartilho, a seguir, uma análise direta, reunindo as respostas para as dúvidas mais comuns que recebo.
Pergunta: O que significa, afinal, “Campos de Altitude” e por que isso virou um problema para os produtores?
Resposta: O termo foi usado na legislação ambiental para designar áreas com vegetação típica de regiões mais altas, com arbustos e gramíneas próprias. O problema é que nem a Lei da Mata Atlântica, nem as resoluções do CONAMA dizem claramente a partir de que altitude se considera “campo de altitude”. Essa falta de definição abre espaço para interpretações que não levam em conta a realidade de décadas de uso das áreas pelos produtores.
Pergunta: E qual é o entendimento atual do IBAMA?
Resposta: Hoje, o IBAMA não reconhece como área rural consolidada os campos usados para pecuária nativa acima de 400 metros de altitude. Isso significa que, se o produtor quiser converter parte dessa área em agricultura, reflorestamento ou pastagem com gramíneas exóticas, pode ser multado ou embargado. Na prática, é como se o histórico de uso dessas terras não tivesse qualquer validade.
Pergunta: Quais as consequências disso para o estado do Rio Grande do Sul?
Resposta: É uma ameaça direta ao modelo produtivo do Estado. Muitos municípios vivem quase que exclusivamente da atividade agrosilvopastoril. Se a interpretação restritiva continuar, vamos ficar praticamente limitados à pecuária nativa, sem poder diversificar com frutas, soja, milho, florestas plantadas ou qualquer outra atividade. Isso é um risco de implosão socioeconômica.
Pergunta: Existe alguma saída legal para essa situação?
Resposta: Sim. A Constituição Federal permite que os estados legislem de forma complementar em matéria ambiental, desde que respeitem as normas gerais federais. Então, o Rio Grande do Sul pode, por exemplo, estabelecer um critério objetivo para delimitar os campos de altitude. Isso traria segurança para produtores e técnicos.
Pergunta: O estado de Santa Catarina já fez algo parecido, certo?
Resposta: Sim. Santa Catarina aprovou lei própria sobre o tema, trazendo mais clareza e segurança para o produtor rural. Essa lei já foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça catarinense, que reconheceu sua constitucionalidade, decisão posteriormente ratificada pelo Supremo Tribunal Federal em sede recursal. Atualmente, a norma volta a ser questionada em âmbito nacional, por meio da ADI 7811, em trâmite no STF. Ainda assim, o histórico de decisões tanto do TJSC quanto do próprio Supremo demonstra que é fundamental que o Rio Grande do Sul não permaneça inerte, deixando-se à mercê das interpretações restritivas dos órgãos ambientais.
Pergunta: E o que o setor produtivo gaúcho pode fazer nesse momento?
Resposta: A mobilização é fundamental. Associações de produtores, sindicatos e cooperativas precisam se unir para apoiar iniciativas para alteração da legislação do estado. Durante a Expointer, por exemplo, houve reuniões importantes com a FEPAM e a SEMA para tratar do tema. Esses movimentos precisam do respaldo direto do produtor.
Pergunta: Qual o papel das instituições estaduais, como FEPAM e SEMA?
Resposta: Elas têm tido uma postura responsável, reconhecendo a necessidade de regulamentar o assunto em nível estadual. O apoio técnico delas é essencial para que a legislação avance de forma equilibrada, protegendo o meio ambiente sem sufocar a produção.
Pergunta: Qual a importância de apoiar a ADI 7811 no Supremo?
Resposta: Essa ação direta de inconstitucionalidade questiona justamente a lei catarinense. O que o STF decidir lá vai impactar diretamente outros estados, incluindo o Rio Grande do Sul. Por isso, é fundamental que as entidades gaúchas se manifestem, mostrando que a questão é nacional e que o produtor precisa de segurança para produzir.
Essa não é uma disputa contra o meio ambiente. Ao contrário, trata-se de alinhar preservação com produção, reconhecendo práticas históricas e garantindo segurança jurídica para o produtor rural.
Thiago Suaid é advogado e sócio da banca jurídica Mosello Advocacia, onde exerce a função de Head da Área de Direito Ambiental. Atua de forma estratégica na condução de casos complexos, negociações institucionais e no assessoramento jurídico a empresas dos setores industrial, de energia e do agronegócio, consolidando sua experiência em regulatório, contencioso estratégico e relações governamentais.